quinta-feira, 5 de novembro de 2009

História? para quê?: reflexões sobre a história e sua aplicabilidade

                                                                                                                                     Giniomar F. Almeida


O que é a história e para que serve? aí estão duas questões “espinhosas”. A primeira, entre outras coisas, pela polissemia do termo história, que possui pelo menos três significados: as ações dos homens no transcorrer do tempo (a passagem do tempo); o estudo e o registro das ações dos homens no tempo (escrita da história ou historiografia); e história pode ser, também, uma narrativa fantasiosa, ficção, mentira, engodo (ver ARÓSTEGUI, 2006, cap.1; LE GOFF, 2003, p.18-19). A segunda pela “inaplicabilidade prática” do conhecimento histórico nos levando a perguntar sobre a utilidade deste estudo.
Sendo história a produção de um tipo de saber, defini-lo deve, necessariamente, identificar seu conteúdo epistemológico e o nível de segurança e objetividade por ele produzido. Para tanto esta produção intelectual deve ser historicizada.
Desde os primórdios da humanidade os homens vêem registrando sua passagem pela terra (pinturas rupestres e outros registros) mesclando fatos práticos do seu cotidiano e mitos das mais variadas formas. Na Grécia antiga, os primeiros “historiadores” Heródoto e Tucídides, aquele considerado o pai da história, propuseram estudar e escrever os fatos passados aproximando-se do que “realmente” teria acontecido e citando as fontes de suas informações, a história começava a engatinhar rumo à objetividade.
Até o século XVIII “a historiografia era considerada convencionalmente uma arte literária. Mais especificamente, era tida como um ramo da retórica, com sua natureza “fictícia” geralmente reconhecida” (WHITE, 2001, p.139), eram narrativas que buscavam mais uma lição moral e/ou uma apologia de algo (rei, reino, religiosos etc.) do que um compromisso com a objetividade e verificabilidade dos seus relatos, “entretanto, no começo do século XIX tornou-se convencional, pelo menos entre os historiadores, identificar a verdade com o fato e considerar a ficção como o oposto da verdade” (WHITE, 2001, p.139), era a tentativa de “limpar” a história de todo seu conteúdo ficcional para, assim, adquirir o estatuto de ciência.
Os historiadores tentaram adequar a produção do conhecimento histórico ao paradigma científico do século XIX, liderado pelo positivismo, que exigia das ciências um conhecimento objetivo, preditivo, testável, com leis universais, objetos de estudos bem definidos, recortáveis da natureza e com aplicabilidade prática dos seus resultados, era a tentativa de enquadrar a história em um modelo que não lhe cabia.
Esses historiadores não percebiam que não se “deve definir a cientificidade da ciência da história com parâmetros de cientificidade obtidos mediante generalização dos procedimentos de outras ciências” (RÜSSEN, 2001, p.96) porque a história tem características próprias que não se adequam ao modelo das ciências, ditas, exatas.
Para que um saber recebesse o estatuto de científico adimitia-se “a existência de um parâmetro ou padrão em função do qual se hierarquizavam as diferentes ciências. Esse padrão era a física, em sua versão newtoniana” (WEHLING, 2006, p. 179) que se julgava a ciência por excelência, com suas leis universais e seus cálculos, probabilísticos, apresentados como exatos (um físico não recorta a natureza, ele representa a natureza com procedimentos artificiais próprios que se “assemelham” à natureza).
O principal problema para adequar a história a esse paradigma é o seu objeto de estudo: o passado da humanidade. Os acontecimentos do passado não podem ser apreendidos diretamente, não são observáveis diretamente, não podem ser recortados da natureza e “não são nem mesmo ‘verificáveis’, mas apenas ‘falsificáveis’ graças a um exame crítico” (POPPER apud CERTEAU, 2002, p.67).
Por tratar de ações humanas, a história não pode emitir “leis históricas” ou prever o futuro, pode apenas inferir a possibilidades de acontecimentos mediante o desenvolvimento dos fatos, não faz profecias, apenas prognósticos. Problema semelhante é enfrentado pela, quem diria, matemática que tendo como objeto de estudo o número, uma entidade abstrata, muitos estudiosos a colocam fora do rol das ciências, embora tenha a seu favor o fato de que a partir de suas abstrações se chegue a resultados práticos.
A primeira metade do século XX assistiu a questionamentos epistemológicos por parte de pensadores da filosofia da ciência que abalaram pilares fundamentais da ciência elaborada no século anterior e concordando que “o princípio da indução, as leis científicas e o determinismo tinham uma validade restrita e não universal” (WEHLING, 1992, p. 5), ou seja, todo conhecimento trabalha com probabilidades e contingências e não com “verdades absolutas”, como queria a física, e o principal motivo da crise do paradigma newtoniano foi justamente “uma implosão, intrínseca à própria física, com o desenvolvimento da teoria quântica e relativista, acrescida depois das discussões sobre o indeterminismo” (WEHLING, 2006, p.179).
Com isso tornou-se claro que o modelo newtoniano-positivista tinha se esgotado e começou a se esboçar o surgimento de um novo paradigma (incerto e indefinido de tão novo) que muitos passaram a chamar, a partir do final da década de 60 do século XX, de paradigma pós-moderno, pós-estruturalista, pós-capitalista, modernidade fluida etc.
Essa crise acabou por ajudar a história a ser aceita como ciência uma vez que o conceito de ciência teve que ser flexibilizado já que a própria física, astronomia e a matemática, poderiam ser excluídas da categoria de ciências por terem objetos de estudos demasiadamente abstratos e arbitrários. Graças a estes questionamentos podemos pensar a ciência como:
a suma das operações intelectuais reguladas metodicamente, mediante as quais se pode obter conhecimento com pretensões de validade. [e] O pensamento histórico-científico distingue-se das demais formas de pensamento histórico não pelo fato de que pode pretender à verdade, mas pelo modo como reivindica a verdade, ou seja, por sua regulação metódica. (Rüssen, 2001, p.97).
A história como ciência “leva a um conhecimento histórico universalmente válido, isto é, a histórias com que se pode concordar, porque seu conteúdo empírico, seu significado e seu sentido estão particularmente bem fundamentados” (Rüssen, 2001, p.127) e as produções dos historiadores “convencem seus destinatários da credibilidade de seus conteúdos na medida em que demonstram o que foi o caso, no passado, por recurso aos vestígios ainda presentes desse mesmo passado” (Rüssen, 2001, p.100).
São esses vestígios (fontes das informações) que garantem a verossimilhança da narrativa, são eles que permitem uma maior proximidade com a “realidade” do fato, uma busca por um conhecimento válido e a possibilidade do confronto entre interpretações diferentes criando diferentes perspectivas de análises. Esta “relatividade da perspectiva histórica deve ser vista, antes, como uma oportunidade para o pensamento histórico promover o aperfeiçoamento constante de seu conteúdo significativo” (Rüssen, 2001, p.115) do que como um problema de fraqueza epistemológica, porque é, entre outras coisas, a falseabilidade das informações, o confronto de teses, que torna um saber objetivo e científico.
As narrativas históricas “são especificamente científicas [...] quando elas são narradas de forma continuamente fundamentada.” (Rüssen, 2001, p.99) e “histórias narradas com especificidade científica são histórias cuja validade está garantida mediante uma fundamentação particularmente bem feita.” (Rüssen, 2001, p.97) e essa fundamentação é justamente a apresentação das bases que sustentaram as informações apresentadas e aos argumentos emitidos.
Essas bases são as fontes de informação que possibilitaram as interpretações e argumentos da pesquisa, sabemos que “não apenas toda interpretação, mas também toda linguagem, é contaminada politicamente” (WHITE, 2001, p.145) e, conforme nos lembra Certeau (2002), o “lugar social” do historiador influencia, sobremaneiramente, o tipo de história que ele produz, seus valores e sua ideologia e sua percepção do devir histórico levando a possíveis divergências de interpretações de acordo com o locus de cada pesquisador.
Todas essas produções, entretanto, passam pelos seus respectivos crivos, pelo seu “lugar científico”, pois ao perguntarmos “o que é uma ‘obra de valor’ em história?” a resposta mais adequada é: “aquela que é reconhecida como tal pelos pares” (CERTEAU, 2001, P. 72), ou seja, é aquela obra ratificada por sua “assembléia de eruditos” cujo maior representante, na atualidade, são as universidades. Qualquer “curioso” pode produzir obras de história mas pessoas que escrevem “fora” de uma instituição são, pejorativamente, chamados de leigos e dificilmente suas obras têm reconhecimento científico.
Essa é a maior diferença entre história e a literatura (ficcional). Um escritor que “inventar” acontecimentos, documentos etc., organizá-los em uma narrativa e apresentá-la como “histórica”, ludibriará os não-historiadores, mas será fácil e rapidamente desmascarado pela crítica mordaz e implacável das academias.
Esse problema não é enfrentado pelo romancista, ninguém critica suas fantasias por serem fantasias, pelo contrário, quanto mais fabulosas forem suas narrativas mais ele pode ser elogiado, ninguém vai “verificar” a validade das informações apresentadas por ele porque este não é o objetivo do escritor nem de seus leitores, apenas alguns casos da literatura como os romances históricos podem enfrentar o problema da verificabilidade mas isto só ocorre porque seus autores os apresentam como uma ficção com “base histórica” e é esta que será verificada e não a parte ficcional.
De modo que não podemos concordar com White na afirmação de que “há muitas histórias que poderiam passar por romance, e muitos romances que poderiam passar por histórias, considerados em termos puramente formais” (2001, p.137-138). Nem mesmo em termos “puramente formais”, a história se confunde, atualmente, com literatura, os narradores são completamente diferentes, as linguagens são diferentes (já que o historiador escreve, primeiro, para seus pares com uma linguagem própria) e os objetivos são diferentes.
Concordamos com Carlo Ginzburg quando este afirma que “uma posição totalmente cética com relação às narrações históricas não tem fundamento” (2006, p.226). Assim:
a cientificidade da história estaria prejudicada se os princípios da recuperação do passado, como história, no presente, fossem meros princípios da narrativa literária e não os da racionalidade constitutiva da história com ciência, cujas operações metódicas distinguem-se claramente da narrativa literária. (Rüssen, 2001, p.119).
Quanto à forma, o historiador assemelha-se ao literato no sentido de concatenar os fatos, as fontes, as interpretações e os argumentos em narrativas mas “relatos narrativos não consistem apenas em afirmações factuais (proposições existenciais singulares) e argumentos, mas também em elementos retóricos e poéticos pelos quais o que seria uma lista de fatos é transformado em estória [história]” (WHITE, 2006, p.193) é neste ponto que entra o estilo do autor, sua forma de escrever e esta subjetividade é necessária à pois sem ela “a historiografia regrediria para uma cronografia” (Rüssen, 2001, p.131) registrando apenas datas e nomes.
Quanto à aplicabilidade do conhecimento histórico (a função da história), somos inclinados a concordar com Jörn Rüssen quando este afirma que a base da história está na consciência histórica e “a consciência histórica não é algo que os homens podem ter ou não – ela é algo universalmente humano [...] enraíza-se, pois, na historicidade intrínseca à própria vida humana prática” (2001, p.78), a consciência história tem a função, segundo ele, de atender às “carências fundamentais de orientação da prática humana da vida no tempo” (Rüssen, 2001, p.30), assumindo “funções de orientação existencial” (Rüssen, 2001, p.34), mas “como ciência, a história fornece sempre mais saber histórico do que é estritamente necessário à orientação temporal da vida prática atual” (Rüssen, 2001, p.105), a pesquisa histórica pode chegar a resultados imprevisíveis e, às vezes, até desconcertantes.
Essa “consciência histórica” é a geradora do interesse pelo passado que dá identidade e situa os seres humanos no tempo criando narrativas mitológicas, lendárias e históricas. Neste caso “história é exatamente o passado sobre o qual os homens têm de voltar o olhar, a fim de poderem ir à frente em seu agir, de poderem conquistar seu futuro” (Rüssen, 2001, p.74) de perceber o seu devir e sua temporalidade.
Essa “função”, entretanto, aproxima a história mais da filosofia e da arte do que das ciências em geral. Assim, “como ciência, a história possui também a faceta que Aristóteles chamava de “divina” (na medida em que, para ele, o saber que não é produzido por sua utilidade, mas por si mesmo, faz o homem participar da essência divina)” (Aristóteles, Metafísica, 282b, apud RÜSSEN, 2001, p.177). De qualquer modo a história é uma ciência especial.
A partir do exposto acreditamos que aqueles que, na atualidade, negam um estatuto científico para a história enfrentam problemas para definir qualquer conhecimento como científico pois já é sabido, até pelos críticos da pós-modernidade, que todas as verdades humanas são relativas e todo saber é contingente, verossimilhante e probabilístico.

Referências Bibliográficas

ARÓSTEGUI, Júlio. A pesquisa histórica: teoria e método. Tradução de Andréa Dore. Bauru: EDUSC, 2006. p. 1-96.

CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Tradução de Maria de Lourdes Meneses. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. p.65-119

GINZGURG, Carlo. “O extermínio dos judeus e o princípio da realidade”. In: MALERBA, Jurandir (org.). A história escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006, p.211-232.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Trad. Bernardo Leitão... [et al.]. -5ª ed.-Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003. p.1-75, 419-476.

WEHLING, Arno. Fundamentos e virtualidades da Epistemologia da história: algumas questões. In: Estudos históricos, Rio de janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 147-169.

______. “Historiografia e epistemologia histórica”. In: MALERBA, Jurandir (org.). A história escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006, p.175-189.

WHITE, Haiden. As ficções da representação factual. In: Trópicos do discurso. Ensaios sobre a crítica da cultura. José Laurêncio (trad.). 2º edição, São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2001, p.137-151.

______. “Enredo e verdade na escrita da história”. In: MALERBA, Jurandir (org.). A história escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006, p.191-210.

RÜSSEN, Jörn. Razão histórica: Teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Tradução de Estevão de Resende Martins. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.

2 comentários:

  1. Decerto investigas a realidade e percebes que há um fluxo incessante e que nos envolve prioritariamente a cada instante como se fosse o ultimo. Viveremos assim? Como se estivessemos em um rio que flui para o mar nos perguntamos: o mar nunca enche? A hist[oria por sua vez poderia acabar? Encher-se de sí mesma? Me diga historiando...

    ResponderExcluir
  2. "todo homem tem por natureza o desejo de conhecer" assim começa a Metafísica aritotélica. A história, como ciência,responde a esse desejo de conhecer a si mesmo através do fluxo temporal que cria um processo identitário, necessário a todo ser humano. Portanto a história científica deixará de existir quando o humano desaparecer porque mesmo se regredir ao "tempo das cavernas" ele continuará registrando sua passagem por este grande e inútil pedaço de pedra flutuante chamado palaneta terra.

    ResponderExcluir